árvore azul

No oco da árvore azul
fiz minha morada.
Destino fantástico,
longínquo, improvável.
Abria a porta
para receber visitas,
mas não estava em casa.
Abri-a tantas vezes,
cheia de esperança,
mas não me receberam,
não me recebi.
Percebi que precisava me convidar mais vezes
e voltar mais vezes
e abrir mais portas
até habitar o oco
até me sentir em casa
até ser o azul.

•••

Poema inspirado na imagem, que foi criada numa oficina guiada por Alys Scott Hawkins na John Hansard Gallery

poema para pai

Te perdemos,
depois perdemos mais,
e mais um pouco.
Quando pensamos que você já tinha ido,
te perdemos novamente,
e ainda mais,
e mais um pouco.
Quanto ainda perderemos de você?
Agora, conversamos por sorriso.
Também o perderemos?
Ou ele ficará até o fim,
memória da alegria,
traço do invisível,
misterioso abraço?

puxando os fios

Não canso de me alegrar com os desdobramentos que minha irmã, a arte educadora Ana Carolina Cozendey, vai dando ao meu livro O Risco e o Fio. O incrível é que gerações de crianças vão passando por ela e brincando com minha história. Recentemente ela desenvolveu um novo trabalho baseado no livro, que ela descreveu assim:

Ao receber duas turmas de primeiro ano do Município do Rio de Janeiro para dar aulas de Roda de Leitura, sendo professora de Artes Visuais, logo percebi que a alfabetização visual deveria seguir junto com a das palavras. Então, selecionei livros literários que também falavam dos elementos visuais, como o ponto e as linhas. Foi assim que, depois de lermos o livro “O Risco e o Fio”, nos dedicamos a várias atividades de desenho com as linhas: riscos livres com diversas cores, linhas livres encontrando formas nos desenhos surgidos, desenhos colando linhas verdes de algodão e continuando com canetinhas hidrocor, até chegar aos desenhos com uma linha só de Picasso e os desenhos de observação feitos com uma só linha.

Como O Risco e o Fio participou do programa que o distribuiu para as escolas do Brasil afora, gosto de registrar aqui atividades realizadas a partir do livro, porque assim as ideias ficam espalhadas também, pra quem mais quiser puxar esses fios!

o improvável

Neste primeiro semestre a escrita ficou meio quieta porque inventei de inventar um novo projeto: o Improbable Club – Creativity Workshops. Há muito tempo tinha essa vontade de trazer um pouco da experiência do Grupo Clãdestino de Arte Educação para a Inglaterra, já que estou morando aqui. De repente, chegou a hora.

O Improbable Club propõe brincadeiras com base nas artes, onde o estímulo é inusitado e a participação conduz à experimentação e criação. O sonho é propiciarmos um espaço de trocas, além do encontro de cada um com seu potencial de transformação.

Os desafios da atualidade são grandes e, para enfrentá-los, precisamos cultivar a imaginação como um terreno fértil onde soluções possam brotar. Exercitando nossa abertura a novas possibilidades, quem sabe acabemos descobrindo que mesmo o improvável não é impossível?

literatura infantil?

Quando lancei O Risco e o Fio, meu pai era meu maior fã. Comentava com todo mundo, emprestava, dava de presente, deixava em salas de espera. E, claro, guardou um, que encontrei depois que ele já estava doente. Mostrei pra ele e quando ele começou a ler pra mim, me toquei de como ele ainda lia, e ainda lê, tão bem (coisa de que sempre gostou!). Apesar de não conseguir mais articular os pensamentos, a linguagem ainda está lá. E foi aí que me veio a ideia de comprar livros infantis pra ele. Os textos curtos e acessíveis o ajudam a acompanhar sem se distrair muito, e as ilustrações acrescentam camadas de atração e informação. O gostoso é que de vez em quando dá pra pedir pra ele ler uma história pra gente, e assim curtimos juntos. E os livros ainda servem como inspiração pra desenhar!

faltou falar

Faltou falar muita coisa. Quis manter o texto anterior simples, mais pra contar sobre a abordagem positiva ao cuidado, mas depois de compartilhar e receber comentários, uma coisa continuou a se remexer dentro de mim.

Acho que o principal que ficou faltando foi falar da relação, para além das práticas e das dificuldades. Papai não consegue mais articular muitos pensamentos, mas algumas vezes a intenção é clara. As palavras quase vêm, acabam escapando, mas o sentimento fica e é comunicado. Uma comunicação de olhos e sorrisos.

Nos prendemos tanto nas palavras e na superfície dos atos e, de repente, quando meu pai não consegue mais se comunicar por esse meio, encontro com ele no túnel subterrâneo da ternura e do bem querer. Falou falar de amor.

se não me falhe a memória

© da foto Francisco Novais (tio Francisco!)

Levou muito tempo até termos um diagnóstico para o meu pai de demência. Até lá, muitas incompreensões. Com as limitações da pandemia, suas capacidades foram ladeira abaixo, e o único lado positivo foi que a doença estava agora plenamente revelada. Ainda assim, mais tempo passou até recebermos orientações dos médicos, então, nosso primeiro apoio foi a internet. Minha gratidão aos que compartilharam suas experiências, informações e reflexões, iluminando o início da jornada, e que me inspiram a contar um pouquinho da minha vivência. Destaco aqui Teepa Snow, que me guiou e ajudou a ir montando as peças do quebra-cabeça. Teepa tem uma abordagem positiva ao cuidado, que considera que o importante é focarmos nas habilidades que a pessoa ainda tem, e não nas que perdeu (conversando com uma amiga, ela concluiu: Talvez a gente devesse agir assim com qualquer pessoa, focar no que ela tem para oferecer, não no que gostaríamos que tivesse).

Claro que é um processo, e é dolorido e inevitável lamentarmos as perdas, mas a aceitação foi um passo essencial para começarmos a agir um pouco mais adequadamente à situação. Situação que está em constante mudança e exige constantes reformulações. É como criar um filho, mas ao contrário, enquanto a criança vai aprendendo e ficando mais independente, papai vai aos poucos desaprendendo e precisando de mais cuidados. Pelo que dizem os especialistas, a estimulação e uso das capacidades ainda presentes, ajuda a desacelerar esse desaprender. E cria espaços, em meio à dificuldade, de curtição da vida como ela é!

Atualmente, papai tem cuidadoras 24h por dia. Meu irmão e eu falamos com ele semanalmente online, porque moramos longe, e minha irmã é a que está sempre por perto. Meu irmão toca violão e canta com ele, e nem importa desafinar (meu irmão, não ele!). Minha irmã faz artes, leva pra passear e é o grande suporte, sempre presente, cuidando, gerenciando, levando à médicos e o que mais precisar. Eu venho adaptando minhas atividades, conforme vou percebendo que não funcionam mais. No momento, a sequência costuma ser assim: papo inicial (onde conto qualquer novidade), aula de inglês (vou mostrando frases pra ele traduzir), matemática (falo umas contas pra ele fazer de cabeça), leitura (leio pra ele), alongamento/massagem (sentados, vou fazendo e ele seguindo), terminando com um exercício de respiração e uma oração. São todas atividades simplificadas, mas eu vibro com ele fazendo e ele parece satisfeito de conseguir. Isso tudo, não sem eventuais frustrações e impaciências (de todos os lados!), dias melhores ou piores.

A leitura foi se simplificando mais e mais ao longo do tempo, porque vai ficando mais e mais difícil dele acompanhar. Acabei chegando ao “Ou isto ou aquilo”, da Cecília Meireles, sendo que só dois poemas caem bem. Para aumentar o repertório, resolvi escrever um outro. Percebi que o que funciona legal, além do ritmo e rima, é a repetição de um verso, que dá uma âncora pra ele não se distrair do poema, e ele se diverte quando paro no meio da frase, pra ele completar o final. Então, esse é o poeminha que escrevi pra ele, e é dedicado à minha irmã:

Se não me falhe a memória

Nasci em Jacarepaguá,
nunca mais voltei pra lá.
Foi morada provisória,
se não me falhe a memória.

Gosto da minha marmita:
arroz, feijão, bife, batata frita.
Até gosto de chicória,
se não me falhe a memória.

Já carreguei lata d’água,
subi o morro sem mágoa.
Joguei bola, fiz o gol da vitória,
se não me falhe a memória.

Na camisa do meu time
brilha a estrela sublime.
Ganha sempre, é a glória,
se não me falhe a memória.

Estudei, resolvi tratar de dentes.
Atendia os pacientes
na cadeira giratória,
se não me falhe a memória.

Me casei, tive três filhos.
Ajudei nos empecilhos.
Apoiei na trajetória.
Se não me falhe a memória

Se não me falhe a memória,
essa é a minha história.
Vai pra você, com dedicatória.
Se não me falhar a memória.

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Pra quem tiver interesse em demência,vale também visitar @obomdoalzheimer, que encontrei recentemente.

tem história no blog! • 8

Tita vai atrás da voz

Foi de repente, que Tita perdeu a voz. Ela procurou em todos os cantos da casa, mas nada. Buscou no bairro, revirou a cidade, investigou o país e, como não achou, resolveu correr mundo.

Acontece que, enquanto ela procurava lá fora, tudo que acontecia dentro dela, alegria, tristeza etc etc, porque não tinham voz, acabavam virando só pensamentos e juntando na cabeça. A cabeça foi ficando pesada, até meio difícil de carregar, mas Tita não desistia, seguia com passos firmes.

Num dia, a cabeça ficou tão cheia, que os pensamentos começaram a se soltar em chumaços de cabelo. Eles saíam embolados no cabelo escuro e não dava pra entender nadinha do que eles tinham pensado.

“Ora bolas!”, Tita resmungou. Mas aí, prestando bem atenção, ela acabou bolando uma ideia: se os pensamentos entupindo a cabeça podiam virar bolotas cabeludas, talvez soprando, ela podia fazer as palavras entupindo a garganta virarem bolas também.

Estufou as bochechas, soprou, soprou, soprou, e todo tipo de bola foi aparecendo, grandes, médias, miúdas. Elas eram tão bonitas, tão… vazias?! As bolas estavam vazias!

Tita desanimou. Desistiu de procurar a voz, sentou num banquinho e resolveu que ia vender as bolas, já que elas não ajudavam em nada. E esperou. Esperou sentada, esperou até ficar com o braço cansado, esperou, só que ninguém passou por ali.

As bolas foram ficando impacientes e começaram a puxar forte, com vontade de voar. Tita segurou firme, mas depois pensou melhor: “Se eu solto, elas viram enfeite do céu”. Então soltou, e elas subiram satisfeitas.

Iam balançando no ar tranquilamente, quando uma estourou. E outra, mais outra, todas! Tita arregalou os olhos. Na verdade, as bolas não estavam vazias, cada estouro liberava uma chuva de palavras, que cintilavam na luz do sol!

Que delícia! Tita esticou a língua pra fora, pra provar aqueles pingos frescos de palavras. Aos pouquinhos, o brilho novo delas foi lavando as palavras ressecadas que tinham sobrado, desentupindo de vez a garganta. Será que agora ia ter espaço pra voz? Pra testar, Tita encheu os pulmões e abriu a boca: mas não falou.

Ela cantou! Cantou de cara pro sol! A voz estava de volta e Tita queria fazer as palavras se espalharem longe, pra pingarem em outras línguas, dançarem em muitas bocas, e desentupirem outras tantas gargantas.

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Da série ilustrando a ilustração
Yael Frankel é uma ilustradora argentina maravilhosa, que eu conheci no Instagram. Quando ela colocou lá 3 ilustrações que estavam na gaveta, eu fiquei animada com a possibilidade dela colaborar com a minha brincadeira de escrever a partir de ilustrações engavetadas. Entrei em contato e ela topou. Obrigada, Yael!

Sobre a ilustradora
Yael é ilustradora e autora. No Brasil, ela publicou Conte-me mais, pela Gato Leitor.
Para curtirem seu trabalho incrível, visitem: https://www.instagram.com/yaelfran/

© das ilustrações Yael Frankel

frutos do blog

Resgatando uma colaboração com minha arte educadora favorita, Ana Carolina Cozendey: há um tempo atrás, ela usou histórias aqui do blog para criar “cineminhas de papel” com as crianças da EM Júlia Lopes de Almeida. Olhem que bacana alguns dos desenhos que elas fizeram para Lisbela e o ovo de dinossauro, Festa de cachorro-quente e uma outra, que acabou saindo do blog para se transformar em uma história diferente, com vontade de virar livro!